PANA – Tecnologias para outras formas de construção: A experiência construtiva de mulheres em movimentos populares

A PANA é uma tecnologia bolsa, recipiente, participante, reprodutora. Ela é uma tecnologia mãe, feminista, ancestral e por isso acolhe diferentes usos e sentidos. A PANA foi feita de mulheres para outras mulheres.

O projeto de extensão e pesquisa Tecnologias Para Outra Forma de Construção: a experiência construtiva das mulheres em movimentos populares é sediado na FAU/Ufal, no grupo de pesquisa IDEA, e foi financiado pelo International Development Research – Carleton University, no Canadá, entre 2020 e 2022. Seu produto final, a PANA, é fruto de uma parceria entre mulheres de três comunidades: o Quilombo Santa Rosa dos Pretos, no Maranhão, construindo uma cozinha comunitária; um grupo de mulheres da Serra da Misericórdia, periferia da cidade do Rio de Janeiro, trabalhando em redes comunitárias para enfrentar a pandemia de COVID-19; e um grupo de pescadoras lutando por sua comunidade tradicional em contraposição ao avanço do turismo em Porto de Pedras, Alagoas; juntas a professoras e estudantes de graduação e pós graduação da UFAL, UFABC, UFRJ e da USP.

Equipe: Porto de Pedras, AL: Gedilza Holanda da Silva Mendonça (Preta) e Jovina Ferreira Lopes. Quilombo Santa Rosa dos Pretos, MA: Josiclea (Zica) Pires da Silva e Josiane Pires da Silva. Serra da Misericórdia, RJ: Sandra Regina da Silva, Vanessa Geraldino Gomes e Ana Paula Santos. FAU/Ufal: Diana Helene, Eva Rolim Miranda, Flávia Araújo, Bruna Oliveira e Mayara Silva. Batuque (Empresa Júnior de Design da FAU/Ufal): Alanna Barros, Beatriz Ramos, Fernanda Rodrigues, Luiza Amorim, Victor Lobo. CTEC/Ufal: Jéssica Lima. NIDES/UFRJ: Amanda Azevedo. UFABC: Bruna Vasconcellos. FAU/USP: Kaya Lazarini.

O projeto foi financiado pelo edital Gendered Design in STEAM (ciência, tecnologia, engenharia, arte e matemática) in LMICs (países de baixa e média renda), entre 20 projetos selecionados no mundo todo. O objetivo original era analisar o canteiro de obras (um espaço hegemonicamente masculinizado) a partir de uma perspectiva feminista, bem como resgatar técnicas ancestrais de construção que foram apagadas junto com o nascimento da divisão sexual e racial do trabalho no capitalismo, que exclui historicamente as mulheres e pessoas racializadas do trabalho tecnológico (DAVIS, 2016; FEDERICI, 2017 e 2019; KILOMBA, 2019; VASCONCELLOS et al, 2017). O foco da pesquisa eram movimentos sociais populares que são, em geral, constituídos majoritariamente por mulheres. Em muitas dessas comunidades, as mulheres são responsáveis ​​pela construção das casas, utilizando técnicas participativas, não hierárquicas, coletivas, aliadas a tarefas de cuidado (muitos canteiros de obras têm crianças como parte do processo de construção, por exemplo); e o projeto pretendia investigar formas que permitissem que esse conhecimento fosse visto, reconhecido e se tornasse uma fonte para fomentar a autonomia das mulheres. A proposta era desenvolver um manual impresso, no qual seriam sistematizadas as tecnologias desenvolvidas por elas, de forma a registrá-las e torná-las reprodutíveis em outros contextos.

Uma das primeiras coisas a se destacar é que o início do projeto coincide com o momento de eclosão da pandemia mundial de Covid-19. Tal fato, incidiu em profundas redefinições metodológicas. Com a pandemia já instalada, demos início ao nosso caminho a partir de reuniões, encontros, cartografias e desenhos que buscavam compartilhar e mapear os territórios: a construção e a produção do espaço; o espaço da reprodução e cuidado; e os materiais construtivos e suas tecnologias. Na etapa de diagnóstico, foi elaborada uma metodologia de cartografia coletiva com foco no mapeamento das relações locais entre gênero e tecnologia. A partir da mescla de práticas do design participativo (SANDER, 2014; PAPANEK & FULLER, 1984) e de cartografias sociais de mapeamento coletivo (CADERNOS EMPÍRICA, 2009; RISLER, 2013; COL·LECTIU PUNT 6, 2014; ACSELRAD, 2008 e 2012) foi criada uma proposta padronizada para a atividade de mapeamento de forma a garantir a unidade e facilitar a sistematização nos três campos de atuação. Primeiramente as mulheres deveriam desenhar individualmente um mapa mental com seu percurso diário, identificando os recursos e tecnologias locais vinculados às suas tarefas cotidianas. Após desenharem seu mapa, elas o apresentariam ao grupo. O segundo momento tinha como objetivo conjugar/confrontar a representação de cada uma acerca do mesmo espaço e proporcionar a reflexão sobre as visões territoriais individuais e coletivas. Com a ajuda da impressão de uma foto aérea do território, o grupo era convidado a elaborar um novo mapa, agora realizado de forma coletiva. Debater as jornadas de trabalho também foi um método encontrado para discutir as diferenças na elaboração das tarefas e dos caminhos/espaços para realizá-las pelas diferentes pessoas, levando em consideração questões geracionais, de gênero, raça e sexualidade e as diferentes funções exercidas no coletivo. 

Após esses encontros, começamos a trabalhar na etapa de desenvolvimento do produto final: um manual que pudesse ser um instrumento de compartilhamento de informações, bem como uma tecnologia que representasse o que as mulheres estavam construindo nos seus territórios. O desenvolvimento participativo deste produto mudaria radicalmente o formato do que poderíamos imaginar como um manual, bem como nossas concepções sobre o que é tecnologia, o que é um “canteiro de obras” e sobre quais tecnologias são vistas como centrais para a promoção da autonomia desses coletivos. O debate se ampliou e surgiram questões para além da construção de casas e espaços físicos compartilhados. Passamos a discutir, os reconhecimentos e as identidades em profunda troca de saberes tradicionais e cuidado entre nós. Foi aparecendo nesses diálogos e nas práticas das mulheres a importância do uso das ervas, sementes e outros elementos de cura e cuidado, como tecnologias. Além disso, foi se destacando uma tecnologia comum: o uso de diferentes formas de enrolar/dobrar tecidos para realização de tarefas. Dos diferentes tipos de turbantes (que servem de adorno mas também como proteção do sol e outras intempéries enfrentadas no cotidiano); até a rudia, uma forma de enrolar tecidos que serve de suporte para acomodar baldes, caixas, potes e/ou grandes objetos em cima da cabeça, transportados deixando as mãos livres. 

Associamos tais inspirações a “Teoria da bolsa de ficção” (The Carrier Bag Theory of Fiction) da escritora estadunidense Ursula K. Le Guin (2021). Neste ensaio de 1988, de apenas algumas páginas mas com uma extrema potência semântica, a autora questiona uma visão recorrente nas histórias dominantes e propõe uma mudança de perspectiva – uma “redefinição feminista da história como uma tecnologia cultural” (Shin; Vickers, 2019, p. 4, tradução livre) – ao contrapor o símbolo fálico do porrete (marca registrada da tecnologia colonial-patriarcal) com o artefato da bolsa. Tal ideia, bastante afirmada, contada e recontada triunfantemente para relatar sobre o ser humano e sua superioridade em relação a natureza – “o Homem conquista a terra, o espaço, alienígenas, a morte, o futuro, etc” – remonta imagens de dominação e violência, de heróis empunhando clavas, pedaços de osso ou madeira: “todos já ouvimos tudo sobre todos os paus e lanças e espadas, sobre as coisas para esmagar e espetar e bater, as longas coisas duras, mas ainda não ouvimos nada sobre a coisa em que se põem coisas dentro, o recipiente para a coisa recebida. Essa é uma história nova”. A autora nos convida a pensar que, muito provavelmente, o primeiro dispositivo cultural criado pelo ser humano, ao contrário da lança, foi uma espécie de bolsa, um RECIPIENTE: “… muitos teóricos sentem que as invenções culturais mais antigas devem ter sido um recipiente para guardar produtos coletados e algum tipo de tipóia ou rede para carregar bebês” (LE GUIN, 2021, p. 19).

Inspiradas por essas vivências e leituras fomos elaborando uma primeira proposta de rascunho de tecnologia, entendendo que essa tecnologia poderia ser uma bolsa que carregasse informações sobre outras tecnologias já desenvolvidas na área. Compreendemos que todos os territórios já estavam desenvolvendo procedimentos e práticas repletos de aspectos tecnológicos que eram cruciais para a manutenção da vida nesses locais. Desta forma, o produto final funcionaria como uma compilação dessas tecnologias. Assim, iniciamos uma pesquisa sobre essas formas de carregar por meio de tecidos e outros materiais em diversas culturas, que foi levada aos encontros coletivos para discussão entre todas mulheres do projeto. Do emblemático tecido Pareô (ou sarongue), que envolve os corpos do berço ao túmulo na Indonésia; as mantas peruanas usadas para tudo carregar; a matula/matulão brasileira; chegando ao Furoshiki, dobradura de pano de origem japonesa usada para transportar desde comida até ferramentas, itens delicados e presentes, com uma história que remonta a mais de mil anos. Além da pesquisa, trouxemos uma consultora moçambicana, Vanilza Silvestre, para ministrar uma oficina de Capulana, um pano moçambicano usado para embrulhar coisas, carregar bebês, e fazer vários tipos de roupas (em modo híbrido: online para todas participantes e presencialmente na Serra da Misericórdia, no Rio de Janeiro).

Passamos, então, a desenhar um tecido, que carregasse tanto dentro de si como impresso nele, as tecnologias ancestrais que têm sido centrais nos territórios onde essas mulheres habitam. Conjugando tanto a necessidade de fazer um material impresso quanto de formular o manual, surgiu a ideia de imprimir o manual em um tecido grande que por si só pudesse constituir um objeto tecnológico e manual com as tecnologias impressas. Depois de muitos ensaios elaboramos um tecido que serve tanto como objeto (pode ser usado como forma de carregar ou amarrar coisas no trabalho diário: turbante, rudia, sacola ou uma amarração para carregar crianças) quanto como manual (em sua estampa estão descritas as tecnologias mapeadas nos territórios). Essa configuração foi decidida em conjunto com as articuladoras territoriais em reuniões coletivas do projeto participativo. O debate sobre construção, canteiro de obras e tecnologias transbordou de seu recipiente inicial, e a materialização destas atividades se tornou o que chamamos de PANA. Uma das mulheres relatou que em seu território e para seus ancestrais tal artefato assim se chamaria: 

 “Pana, pelo o que a gente entende, é uma palavra que mantemos da língua do povo Jeje-Nagô ao qual pertencemos. E é muito usada no sentido de espiritualidade, que é essa pana que amarra a cabeça, que protege a cabeça, que guarda o Orí, que é o lugar de ligação com nossos encantados, que é o portal de passagem da nossa espiritualidade”. Transcrição de explanação de Josiclea (Zica) Pires da Silva via whatsapp em 27 de junho de 2022.

O desenho da PANA foi pensado para funcionar tanto como um grande pano como para ser impresso em folhas A4, constituindo também a possibilidade de se tornar um manual-livreto, aumentando sua acessibilidade, pois poderá ser impresso por qualquer pessoa em qualquer lugar com uma impressora comum. O tamanho escolhido, após pesquisar as formas de amarrar e carregar em várias culturas e tentar encontrar um tamanho que combinasse a maior possibilidade possível de dobraduras/amarrações e também acolher em forma impressa todo o conteúdo do manual, foi um tecido quadrado, de 1,40×1,40 metros. A partir dessa configuração, o pano foi subdividido em seções de 20×20 cm (tamanho possível de ser impresso em folhas A4), nas quais o conteúdo foi organizado a partir de uma grade padronizada (7 colunas de 20 cm por 7 linhas de 20 cm), totalizando 49 Folhas A4 na versão livreto.

Para a forma de representação, foram escolhidas três árvores que representam cada um dos territórios, nas quais orbitam a descrição das tecnologias locais, por meio de uma organização circular, quebrando a possibilidade de hierarquia visual. Cada território escolheu a árvore que o representaria –  a saber: no quilombo, o Baobá; na Serra da Misericórdia, a Aroeira; e em Porto de Pedras, o Coqueiro. As raízes entrelaçadas entre elas representam a conexão ancestral das diferentes mulheres participantes do projeto. Tal imagem foi sugerida por um dos mapas individuais realizados nas atividades de cartografia, além disso, todas representações desenhadas pelas mulheres descrevendo seus territórios foram replicadas nos desenhos componentes da PANA. Esta forma de desenho coletivo foi uma proposta construída pelas próprias mulheres, que levantaram a importância da atividade de cartografia para compor o produto final: a relação entre território e tecnologia foi colocada por elas como algo indissociável.

A partir de uma perspectiva feminista, o projeto, apoiado em metodologias participativas por meio das quais as mulheres envolvidas puderam redefinir os caminhos estabelecidos, levou à construção de um produto final totalmente diferente do planejado. O foco inicial na construção civil foi ampliado, e o CUIDADO surgiu com grande centralidade, como um eixo articulador das tecnologias. A PANA nos impulsionou a repensar nossas próprias noções androcêntricas sobre o que é tecnologia, cruzando-as com gênero e cuidado a partir das relações imbricadas entre corpo e território que as mulheres estabelecem. Todo este processo de elaboração nos instiga a repensar as metodologias participativas e as cartografias sociais a partir de uma perspectiva feminista que tem a ética do cuidado como uma de suas prioridades centrais.

Veja mais no site do projeto: https://crocomila.wixsite.com/tecnologias-para-out e baixe a versão livreto em A4 da PANA para imprimir em casa.

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REFERÊNCIAS

ACSELRAD, Henri. Cartografia Social e Dinâmicas Territoriais: marcos para o debate.  Mapeamentos, identidades e territórios. Rio de Janeiro: IPPUR/UFRJ, 2a edição, 2012. 

___. Cartografias Sociais e Território. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, 2008.

CADERNO EMPÍRICA – Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da Universidade Estadual de Campinas, Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários/ UNICAMP – Campinas, SP: Instituto de Economia, 2009.166 p.

COL·LECTIU PUNT 6. Mujeres trabajando. Guía de reconocimiento urbano con perspectiva de género. Barcelona: COMANEGRA, 2014.

HELENE, Diana et al. “A cartografia que virou turbante: relações entre tecnologia, corpo e território”. Maceió: REVISTA IMPETO, 2022.

LE GUIN, Ursula K. A teoria da bolsa da ficção. São Paulo: N-1 Edições, 2021.

PAPANEK, VICTOR &  R. BUCKMINSTER FULLER. Design for the real world. London: Thames and Hudson, 1972.

RISLER, JULIA & ARES, PABLO. Manual de mapeo colectivo: recursos cartográficos críticos para procesos territoriales de creación colaborativa /Julia Risler y Pablo Ares. – 1a ed. – Buenos Aires : Tinta Limón, 2013: https://geoactivismo.org/wp-content/uploads/2015/11/Manual_de_mapeo_2013.pdf

SANDER, ELIZABETH B.–N. “Perspectives on participation in design”. In: Wer gestaltet die Gestaltung?. transcript Verlag, 2014. p. 65-78.

Um pensamento sobre “PANA – Tecnologias para outras formas de construção: A experiência construtiva de mulheres em movimentos populares

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